Dentro da Sua Cabeça
- Julia Chaves
- May 30, 2019
- 35 min read
Updated: Jun 4, 2019

I
Meus dedos pareciam ter vontade própria enquanto registravam impressões digitais no pescoço branco como leite. Mais força, mais força, pra frente e pra trás, pra frente e pra trás. Renata tossia, esperneava, engasgava com a própria saliva, mas o corredor do colégio estava deserto, as luzes piscavam e acendiam, anunciando um possível curto circuito. Os olhos castanhos de minha irmã saltavam para frente, procurando por algum sinal de piedade. Foi quando finalmente olhei para ela, seu olhar agonizante implorava pela vida, mas eu tinha que continuar, tinha que terminar o que comecei, tinha que....
- Porra, cara, toma cuidado! Quase me derrubou!
Senti o gelado do concreto de mármore em minha bochecha. Olhei a porta do banheiro masculino escancarada e me dei conta de que estava caído, esparramado no chão enquanto uma voz grossa terminava de me puxar de volta à realidade.
- Tá tudo bem, moleque? – levei um susto ao sentir a mão em meu ombro. Meu coração batia tão acelerado que quase conseguia escutar. Pisquei os olhos e reconheci a fisionomia de alguma turma do terceiro ano. Ele era mais alto do que eu, o uniforme sem manga revelava músculos protuberantes. Acho que seu nome era Augusto. Ou seria Gustavo?
- Tá, tá tudo bem, sim. Eu tô de boa. – levantei e tentei soar o mais normal possível – Desculpa. Eu juro que não vi que você estava saindo quando abri a porta.
- Se liga, cara! Você estava olhando pro nada. Fica esperto! – disse num tom surpreendentemente paternal, quase que me passando um sermão, e desapareceu pelos corredores vazios do último andar.
Não havia uma alma viva no banheiro. Podia escutar o som do silêncio. Encostei na parede e examinei minhas mãos. A cena voltou ao meu pensamento, clara como um cristal recém esculpido. Olhei fixamente para meus dedos, e me vi novamente apertando o pescoço de Renata, pra frente e pra trás, pra frente e pra trás. Respirei fundo. Fechei a porta. Os parasitas da culpa corroíam minhas entranhas.
“Você queria enforcar sua irmã”
Agora estavam na minha consciência, repetindo seu mantra da vez. A cena ainda passava na minha mente, como um plano sequência infinito. Comecei a caminhar até a pia.
“Você a abraçou forte ontem à noite e pensou em enforca-la. Não era isso que você queria?”
Senti um aperto no peito. Andei de volta a entrada, abri e fechei a porta novamente. Tentei obrigar meus pés a andarem para frente. O pensamento ainda não saíra de mim. Vi os olhos de Renata procurando os meus. Repeti o percurso. Abri e fechei a porta. E depois de novo, e de novo, e de novo, e de novo.
- Eu não queria machucar minha irmã, foi só um abraço. Foi só um abraço, foi só um abraço! Minha irmã está bem, não houve nada com ela! – gritava mentalmente aos parasitas, mas suas lanças eram afiadas e estavam apontadas para mim.
“Mas você queria enforca-la naquela hora, não queria?”
O suor castigava minha testa. “Não, eu não queria machucar minha irmã! Foi só um abraço apertado, ela está bem, nada aconteceu!” Gritei novamente, dessa vez num auto falante que conseguiu atingir o que restava do meu lado racional. Depois de fechar a porta pela oitava vez, consegui cruzar a linha de chegada da pia enferrujada.
Lavei o rosto de olhos abaixados, não queria encarar o espelho à minha frente, não sabia o que isso provocaria. Joguei água em mim mesmo algumas vezes, como se ela fosse capaz de limpar todas as minhas dúvidas junto com o suor. Decidi olhar meu reflexo. Dessa vez a dor foi física, lancinante. Sentia o clássico nó na garganta enquanto as lágrimas se acumulavam e vulcões explodiam de vergonha dentro de mim.
Eu era mesmo um psicopata?
II
O refrão de “Linger” dos Cranberries se repetia pela segunda vez quando cheguei ao meu prédio. Carregar meu fone de ouvido para todo lugar era essencial. Odiava ouvir conversas alheias, e a música no volume máximo geralmente ajudava a controlar meus batimentos, me distraía em momentos de crise. Aquela tarde nublada de quinta-feira fazia parte de um período em que a tensão já estava estacionada dentro de mim fazia algum tempo e não dava sinal de levantar acampamento, de modo que eu sempre precisava de alguma escapatória.
- Bom dia, Zé – disse, tirando um dos fones e dando uma rápida olhadela para meu porteiro.
- Bom dia, Léo – respondeu Zé, sem tirar os olhos da mini televisão.
Fechei o portão atrás de mim. Tentei abrir de novo para checar se estava bem trancado. Dei sorte de nascer numa família abastada e morar num edifício muito bem arquitetado no coração de Ipanema, não queria ser responsável por nenhum assalto. Chequei mais umas quatro vezes e olhei de relance para Zé, sentindo a vermelhidão no rosto, mas ele não desgrudava os olhos da televisão. Atravessei o hall de entrada de cabeça baixa e não pude deixar de me perguntar se ele fingia não prestar atenção nesse espetáculo diário e caía na risada sempre que o elevador subia levando o louco embora dali.
Encontrei Renata no sofá, fazendo o dever de casa. Me certificava de que tinha girado a chave direito mas, na terceira vez, fui interrompido pelos resmungos de protesto de minha irmã.
- Leonardo, para! Você vai quebrar a porta!
- Desculpa. Mamãe ligou? – eu sabia a resposta, mas era de praxe perguntar.
- Você sabe que não.
- E papai?
- Também não. – respondeu mal-humorada voltando para a folha de exercícios em cima do caderno.
Larguei a mochila no chão e sentei ao lado dela. Renata era parecida comigo. O rosto era um pouco mais fino, mas o contorno dos olhos e o nariz levemente arrebitado podiam facilmente denunciar nosso parentesco. Ela conseguia ser mais branca do que eu, mas suas bochechas eram enfeitadas com pequenas sardinhas que lhe davam uma aparência mais saudável e harmonizavam o conjunto da obra. Já ouvi de parentes velhos em ceias de Natal que Renata era como uma versão feminina minha, mas eu não concordava. Ela era uma versão melhorada, aperfeiçoada de mim. Tudo que eu queria era abraça-la, pedir perdão, mas não podia. Tinha mais medo de machuca-la do que de qualquer outra coisa.
- Re, eu te amo, tá? – conseguir pegar em sua mão direita, interrompendo a trajetória da caligrafia perfeita.
- Eu também te amo, Léo – disse ela, olhando em meus olhos pela primeira vez desde que chegara em casa. Abaixei a cabeça imediatamente. Encara-la seria demais. – Você tá bem?
- Sim, tô bem.
- Leonardo, olha pra mim – ela segurou meu rosto com as duas mãos, me obrigando a olhar para frente. Agarrei uma almofada em meu colo e apertei a parte de baixo do tecido com toda força – Você precisa se distrair, cara. Se não fosse a escola você nem sairia dessa casa. Você tem que se ajudar, fazer alguma coisa por você mesmo!
Eu sabia que tinha sorte de ter Renata para conversar, mas não pude evitar a pontada de raiva que brotou em meu ego com as sementes daquelas palavras. Não importava qual era o assunto ou circunstância, Renata sabia deixar clara a insignificância dos dois anos a menos que a separavam de mim. Sua maturidade, seu pé no chão, me humilhavam e a coroavam bravamente como a irmã mais velha.
- O que você quer que eu faça, Re? – disse.
- Léo, você tá cheio de olheira. Tem alguma coisa que você quer me contar? – eu podia ler a preocupação estampada em sua face.
- Ontem à noite, quando eu te abracei antes de dormir, foi com muita força, né? Eu te machuquei? – finquei a ponta da unha do dedo indicador na pele do dedão embaixo da almofada.
- Do que você tá falando, Leonardo? Cara, eu não aguento mais te ver assim! Por que você não sai com seus amigos? Tenta se ocupar, você não tá vivendo. Eu não consigo te entender.
- Eu tô tentando, Renata
- Não, Leonardo. Você não tá tentando.
Senti o peso da derrota, aquela sensação horrível de saber que está errado e não ter o que falar.
- Tá bom, Renata. Eu vou tentar, tá ok? – levantei minha bandeira de redenção e subi as escadas em direção ao meu quarto.
Acendi a luz. Meus dedos ainda estavam úmidos. Se o suor entrasse pelas laterais do interruptor poderia entrar na corrente elétrica e dar um choque na próxima pessoa que apertasse. Pensei, pensei, pensei, e escrevi mentalmente que era improvável que mini partículas de suor provocassem tamanho desastre.
“Não acha melhor checar? Se algo acontecer vai ser culpa sua.”
Logo imaginei Renata desmaiando com a carga de eletricidade quando viesse me acordar de manhã, e apertei o interruptor novamente. Nenhum choque. Repeti o procedimento três vezes. Nenhum sinal de dor. Ouvi o coro angelical do alívio e me joguei na cama de casal. Eu queria dormir e só acordar na manhã seguinte, mas eu sabia que a tranquilidade do sono estava fora do meu alcance. Tentei fazer o dever de casa, ocupar minha mente com logaritmos e funções. Odiava matemática mas, naquele momento, ela poderia ser uma aliada, um ombro amigo talvez. Li algumas linhas sobre a terceira fase do Romantismo e fiquei o resto da tarde escrevendo uma resenha de “Os Miseráveis”, de Vitor Hugo. Dei sorte de ser uma obra mundialmente conhecida, de modo que transbordavam resumos e trabalhos feitos da internet. Era um livro grande, então o professor havia nos dado um mês para ler. Literatura era minha matéria preferida. Passei minha pré-adolescência devorando clássicos como “O Apanhador no Campo de Centeio” e “O Sol é para Todos”. Os livros sempre fizeram parte da minha vida, mas fazia mais ou menos um ano e meio que eu não conseguia ler nada. É difícil de explicar, mas me concentrar numa narrativa não tinha o mesmo efeito da música em mim. Toda vez que abria um livro e tentava acompanhar uma história era como se as letras se misturassem com meus fantasmas e eu fosse transportado de volta ao corredor escuro onde assassinava minha irmã, ou ao topo de um arranha-céu, de onde a derrubava e assistia seu corpo magro quebrar no para-brisas de algum carro. Sei que é complicado de entender, mas eu podia jurar que já senti suas costas em minhas mãos impulsionando a queda.
Por volta das 20h, desci para jantar. Comi o resto da pizza de ontem junto com Renata enquanto assistíamos televisão. Eva, nossa empregada, não ia trabalhar fazia dois dias, pois seu neto de quatro anos pegara a famosa virose típica da baixa imunidade infantil, de forma que eu e Renata estávamos vivendo a base e pizza e congelados. Subi, tomei banho e peguei meu violão. Arranhei “Here, There and Everywhere”, dos Beatles, a última música que aprendera a tocar desde que largara as aulas. Deitei para dormir e a sessão de tortura começou. Era a pior parte do dia para mim, porque não havia como não pensar. Surpreendentemente, a primeira coisa que me veio à cabeça foi o concelho de Renata: “você precisa se distrair”. A questão é que só o que eu tentava fazer da vida era me distrair, mas o exército de parasitas era numeroso, e especialista em limitar minhas possibilidades. Sair com meus amigos? Desde que esconder minhas manias se tornara uma grande prova de fogo, eu passei a ter certo receito do contato social. Ainda conversava com alguns nos intervalos das aulas e na hora do recreio. Mas não conseguia relaxar, não ficar tenso em ter que repetir algum movimento ou arrastar o sapato no chão sempre que visse algo na calçada que lembrasse um pedaço de vidro, e eu pudesse sem querer fazer Renata correr o risco de se cortar se o levasse comigo pra dentro de casa. Lembrei, então, do Léo de cinco ou seis anos de idade se balançando na corda bamba da fantasia de achar que o cotovelo esquerdo ia ficar com ciúme se só batesse o direito na mesa. Quando foi que eu me tornei refém de mim mesmo?
Era nisso que pensava quando senti meu celular vibrar. Imaginei ser o whatsapp de algum retardatário no grupo da sala pedindo que alguém enviasse a resenha de literatura para servir de base para o seu trabalho. Tomei um susto quando vi o símbolo do Tinder nas notificações. Renata me obrigara a baixar o tal aplicativo de encontros fazia uns seis meses. Às vezes ela pegava meu celular e passava o dedo escolhendo pretendentes desesperadas para seu irmão mais velho esquisitão.
- Eu também amo Beatles. #ficaadica
A mensagem era de uma menina chamada Beatriz, com a qual, aparentemente, eu tinha dado “match”. Demorei um pouco para entender sua colocação, mas depois abri meu próprio perfil e lembrei que Renata escrevera como minha descrição: “Se curtir Beatles, tá tudo certo, pode mandar um oi!”. Que lindo.
- Jura? Qual sua música preferida? – perguntei, mais por educação do que por curiosidade.
- Pergunta difícil! Kkkkk
Sempre detestei esses essas risadas virtuais. Tenho certeza que metade das pessoas que enviam essas letrinhas juntas estão segurando o rosto com a mão e olhando para o teto.
Ela demorou uns cinco minutos para responder.
- Talvez “The Long and Widing Road”, mas acho que ela empata com “Here, There and Everywhere”.
Meu maxilar chegou a doer por um segundo com o sorriso de canto de boca que se formou em meus lábios, desacostumados a se esticarem para os lados.
- Boa resposta! “Here, There and Everywhere” é a minha preferida.
- Ponto para a minha pessoa! – comemorou junto com um emoticon sorridente.
- É, acho que sim kkkkk - decidi ir contra minhas convicções midiáticas, mas não me senti mal, eu realmente havia achado graça.
- Acho que vou dormir escutando ela.
Não sabia dizer se isso foi uma deixa para encerrar a conversa ou para apontar a minha vez de puxar assunto. Sim, eu estava socialmente enferrujado à esse ponto. Parei para examinar o perfil. Havia somente uma foto: uma moça de short jeans e regata branca sentada numa pedra à luz de um pôr-do-sol que dava o toque final à linda vista de uma praia, que logo identifiquei não ser do Rio de Janeiro. Ela exibia um sorriso largo e uma arcada dentária farta. Dava pra ver que os dentes principais se precipitavam um pouco para frente mas, olhando bem, até que faziam uma boa combinação com seu rosto. Beatriz não tinha as mesmas sardinhas de Renata, mas os braços nus mostravam um bronzeado charmoso. Os cabelos castanhos caíam na altura dos ombros em forma de ondas estreitas e volumosas. Óculos escuros em formato aviador bloqueavam minha visão da cor dos olhos.
Esperei mais uns quinze minutos, mas Beatriz não deu nenhum sinal de vida. Puxei as cobertas e procurei “The Long and Widing Road” no Spotfy. Fechei os olhos e deixei as notas musicais traçarem seu percurso de meus tímpanos ao sistema nervoso, até não conseguir mais escutar.
III
Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho
Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho
Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho
Completava a segunda metade da folha enquanto o professor de Arte explicava algo sobre a arte barroca no Brasil. Fuzilava internamente o compasso que jazia inerte em cima da carteira ao lado da minha. Se não fosse por sua ponta cortante, talvez eu não tivesse me imaginado mutilando os dedos de Renata quando comecei a tomar notas do dito escultor.
Podia sentir meu rosto se contraindo ao visualizar a pele do anelar se desprendendo da palma da mão delicada. Escrevi de novo e senti a vibração no bolso.
- O que mais você curte além de Beatles?
Eu não sabia se ficava feliz ou irritado, mas consegui inspirar, expirar, e largar a caneta em cima do caderno. A mensagem de Beatriz surgira como a última boia disponível no naufrágio hipotérmico do Oceano Ártico.
- Não muita coisa... livros, talvez.
- Minha vez agora: qual seu livro preferido?
Boa tentativa, mas essa resposta eu já tinha pronta.
- “O Apanhador no Campo de Centeio”, definitivamente.
- Putz, não vai me dizer que você é ranzinza como aquele garoto!
Arregalei os olhos. Olhei pra frente para ter certeza de que o professor não desconfiava do celular.
- Holden Caulfield não é ranzinza, só é incompreendido.
- Incompreendido, ranzinza e antissocial kkkkk
Engoli em seco ao me dar conta de que essas três palavras basicamente definiam a minha personalidade. Vi os três pontinhos que indicavam digitação pipocarem na janela da conversa.
- Mas o final desse livro é de fato bem bonito.
- O melhor de todos! Quando li da primeira vez tinha treze anos, e fiquei um pouco decepcionado com o final, achei simples demais, sem emoção, sem surpresas…mas quando reli, ao dezesseis, entendi que justamente a simplicidade é que era a chave da emoção...Holden se sente feliz pela primeira vez com as coisas simples da vida...
Sempre quis dar essa explicação para alguém, mas nunca tivera a chance.
- Uau! Que profundo! Você deve ter se identificado mesmo.
Mais uma vez ela acertou em cheio. Era estranho ter uma conversa e conseguir me concentrar somente nas palavras que dizia e que me eram ditas, ou, no caso, que escrevia e que me eram escritas. Senti uma pontada de algo no estômago. Seria adrenalina? Nada parecido com os temores do mundo físico.
- Quer me falar mais sobre você? Que mais você curte além de Beatles?
Ela digitou, depois parou de digitar, depois recomeçou.
- Eu adoraria, mas confesso que meus dedos tão cansando kkkkkk. Vi que você colocou Ipanema na localização, então deve conhecer o Shennanigans da General Osório, eu sempre vou lá com meus amigos. O que acha de eu te falar mais do meu gosto musical lá enquanto a gente toma uma cerveja?
Estava na cara que meu muro de proteção virtual não ia se aguentar em pé por muito tempo. Pessoas normais querem se encontrar. Pessoas normais querem fazer contato visual, e o mais estranho de tudo era que eu também queria. Se era desejo, carência, curiosidade, eu não sabia dizer, mas definitivamente era surpresa, surpresa por me dar conta de que estava considerando a possibilidade de sair com uma pessoa que não fosse Renata. Só o que me segurava era o medo. E as correntes do meu medo já atingiam um nível de peso massacrante. Meus demônios não costumavam dar aviso de suas visitas, e eu teria que ser mais forte do que eles, como não fui em dois anos de luta constante. Consultei todas as minhas vozes de bom senso e recebi opiniões variadas. A decisão era só minha. Pensei em Renata me falando para viver, para fazer algo por mim mesmo. Segurei o celular com força.
- Acho ótimo! Que horas?
IV
O Shennanigans cheirava a fritura. O balcão com torneiras de cerveja, as mesas circulares mal iluminadas e os pôsteres de bandas estrangeiras espalhados pelas paredes caracterizavam o cenário como um típico pub estrangeiro em plena Zona Sul carioca. Eu me sentia num episódio de “How I Met Your Mother” sentado numa mesa para dois bem no centro do salão ao som da guitarra de Slash em “Sweet Child of Mine”. Marcamos às 20h mas, na correria para não me atrasar, acabei chegando quinze minutos antes. Olhei em volta. O bar não estava nem vazio nem cheio para uma noite de sexta-feira. Alguns grupos de amigos dividiam porções de batatas-fritas com queijo, casais compartilhavam drinks.
Tomava mais um grande gole quando levantei os olhos para a entrada. O bronzeado tinha diminuído consideravelmente e a cabeleira castanha volumosa crescera até um pouco acima da cintura, mas o sorriso estava intacto. Os óculos escuros haviam sido substituídos por lentes de grau retangulares, juntas numa ousada armação vermelha. Beatriz parecia fazer charme segurando o aro quando chegou à mesa. Segurei a respiração e me apressei em levantar.
- Muito prazer, Senhor Incompreendido! – ela estendeu a mão.
- O prazer é meu, Senhorita “The Long and Winding Road” – respondi apertando sua mão e forçando um sorriso.
- Eu tenho outros gostos na vida. – disse Beatriz rindo ao mesmo tempo em que se acomodava na mesa.
Ela usava uma blusa cinza de malha que deixava um dos ombros à mostra. A estampa da frente mostrava o símbolo da banda Ramones. Uma calça jeans e um All-Star branco completavam o figurino nem um pouco condizente com o que eu imaginava encontrar.
- Tipo Ramones? – perguntei num tom razoavelmente irônico. Tentava demonstrar firmeza, mas por dentro me sentia andando numa corda bamba pendurada entre duas torres.
Qualquer movimento em falso poderia ser fatal. Ela olhou para baixo rapidamente e examinou o conteúdo da roupa.
- Pensa numa pessoa eclética! Pensou? Agora triplica! Sou eu!
- Eu também me considero musicalmente eclético.
- Não mais do que eu! Eu escuto desde Ramones até Aviões do Forró!
- Me recuso a acreditar nisso! – agora eu ria de verdade. Aviões do Forró? Sério? Quem admite isso no primeiro encontro?
- Pô, já foi à um show de forró? É divertido!
- Imagino.
- Mas, Forró e Ramones à parte, me fala mais sobre você. O que você faz da vida além de ouvir música?
- Não muito. Só vou pra escola e escuto música.
- Tenho um palpite pra qual faculdade você vai ano que vem.
- Infelizmente ainda não vai ser ano que vem.
Ela arqueou as sobrancelhas, confusa.
- Ué, você não tem 18 anos?
- Sim, mas eu repeti o segundo ano e atrasei minha formatura – corei imediatamente, mordi a parte debaixo da gengiva para distrair. Não devia ter dito isso.
- Ah, entendi. Engraçado, você parecia mais novinho na foto.
- Aquela foto é antiga, foi minha irmã que colocou – falei sem pensar. Oura informação irrelevante.
- Você tem irmã? Mais nova ou mais velha?
- Mais nova, tem 16 anos. – saquei o celular do bolso e mostrei minha foto abraçado à Renata em frente à casa de Itaipava de nossa avó.
- Nossa, vocês são muito parecidos! – ela puxou o celular um pouco mais para perto – Sabe, eu sempre quis ter um irmão, mas minha mãe nunca quis ter mais de um filho – Beatriz imitou a carinha triste de uma criança mimada de cinco anos à quem negaram mais um sorvete.
- Qual a idade dela? Talvez ainda tenha tempo.
- Pô, quem dera, mas minha mãe morreu quando eu tinha sete anos, eu fui criada pelo meu pai, ou meu pãe, como eu costumo dizer – sua enorme arcada dentária marcou presença novamente por alguns milésimos de segundos. Meus músculos faciais murchavam enquanto lia o decreto de arrependimento no rosto de Beatriz.
- Putz, pesei o papo, né? Foi mal. – ela soltou um risinho, buscando descontração como quem caça um tesouro.
Nunca gostei de sentir pena dos outros. Já lidava com o dó involuntário que sentia de mim mesmo fazia muito tempo. Mas, naquele momento, não me importei de sentir pena de Beatriz. Admirei a força em seus olhos ao mencionar sua mãe para um completo estranho.
- Tudo bem – segurei de leve a sua mão, me permitindo um passo maior. Não pude deixar de reparar que suas unhas eram ruídas até o sabugo, mas o esmalte verde água dava um tom mais colorido ao visual – Agora é a sua vez de me falar sobre você.
Conversamos por mais uma hora. Beatriz me contou que acabara de entrar na faculdade de Ciências Sociais, e que pensava em ingressar no ramo acadêmico. Seu jeito era gracioso, sabia rir das próprias piadas e esbanjar um jeito de moleca que se desprendia um pouco da realidade. Acreditava em astrologia, e me disse algumas vezes que fazia jus ao seu sol de canceriana, sempre emotiva e sonhando acordada. Ás vezes, quando batia um silêncio momentâneo, ela começava a rir do nada, aleatoriamente, alegando ter se lembrado de alguma situação engraçada do passado. Isso me fazia rir também, em parte porque gostava da sua risada e em parte porque gostava de ver pessoas fazendo esquisitices, era sempre reconfortante para mim. Estávamos na terceira rodada de cerveja, quando decidimos jogar um “bate bola, jogo rápido” e responder cada um com a primeira coisa que viesse à cabeça.
- Uma banda? – comecei.
- The Beatles.
- Nossa, que original!
- Minha vez. Um filme?
- Hmmmm.... “Clube dos Cinco”
- Nossa, sua cara!
- Já sabe o que é e o que não é a minha cara? – indaguei, curioso.
- Digamos que já dá pra ter uma leve ideia – rebateu Beatriz, enrolando o cabelo nas costas, deixando o pescoço à mostra. Senti um leve arrepio entrar em contato direto com minha espinha e percorrer para as palmas das mãos. Conseguira me segurar até agora, mas os parasitas também podiam ser atraídos por qualquer coisa, uma parte do corpo, uma pessoa, um sentimento, uma letra de música, um filme, uma vida como um todo mergulhada na vulnerabilidade.
Beatriz optou inconscientemente por aumentar o nível de tortura, e ajeitou as mangas da blusa um pouco mais abaixo dos ombros, deixando a saboneteira definida ainda mais visível.
- Ih, sua cerva acabou. Quer rachar o resto da minha? – perguntou, me estendendo a grossa caneca de vidro, cheia até a metade.
Aceitei a oferta. Peguei a cerveja pela alça e aproximei minha cadeira de Beatriz. Finalmente pude identificar a cor de seus olhos: verdes, mas um verde vivo, cor de esmeralda recém descoberta na mais profunda das jazidas minerais. Já não escutava mais a música nem prestava atenção nos outros clientes. Minha oportunidade estava clara. Depositei minha mão direita em seu rosto e ela retribuiu o gesto delicadamente. Estava há menos de três centímetros de sua boca, não tinha mais tempo a perder. Apertei a alça gélida em minha mão esquerda, esmurrando o objeto cortante contra o concreto da mesa. Deixei a enxurrada de bolinhas transparentes cair pelo chão e, com o maior caco de vidro resultante do golpe, risquei a garganta de Beatriz num movimento quase imperceptível de tão rápido. Minha mão direita puxava as ondas castanhas para trás da cadeira enquanto a malha acinzentada ganhava uma nova coloração, que se espalhava para o resto do corpo sem vida.
- Léo? Léo?
A imagem da glote imóvel espirrando sangue fresco estava tão enraizada em minha mente, que levei um ligeiro susto ao perceber o pescoço de Beatriz limpo, vivo, com apenas um crucifixo de prata em volta.
- Oi! Desculpa! – consegui dizer olhando em seus olhos, eles eram realmente verdes.
- Pra onde você foi? Porque aqui você não estava.
- Nenhum lugar especial. Só estava lembrando de uma coisa – a cena se rebobinava no meu cérebro, uma, duas, três, quatro vezes.
- Lembrando de que? Sou curiosa! – indagou Beatriz, mordendo uma mecha de cabelo.
- Um trabalho atrasado da escola, nada demais – menti, não tinha alternativa viável.
Ela assentiu com a cabeça, fingindo acreditar. Levantei o braço para chamar o garçom. Senti as pontas da arma de vidro. Eu era capaz daquilo, era aquilo que eu queria, não era possível. Pedi uma água sem gás. Senti a flecha da culpa cravar-se em meu coração. Levantei o braço de novo discretamente, como quem vai coçar as costas. Não, eu não queria, foi só um pensamento.
- É sua vez!
Demorei um pouco para lembrar que ainda estávamos jogando.
- Ah sim! Hmmm... uma comida? – olhei para o hambúrguer na mesa da frente e falei por impulso.
Eu não me permitia ser feliz. Será que estava condenado a querer machucar todo mundo que me fizesse algum bem? Levantei o braço de novo, dessa vez passando a mão pelo cabelo como quem não quer nada.
- Brigadeiro de colher, mas tem que ser o meu. Se você não provou o meu, você ainda não sentiu o gosto do paraíso na terra – gabou-se, forçando uma expressão convencida, com ajuda do sorriso contagiante. Levantei o braço uma última vez, acho que consegui convencer de que estava me espreguiçando.
- Tá tudo bem?
- Tá. Quer dar uma volta? – eu precisava sair de perto daquela caneca de vidro.
V
Beatriz fez questão de pagar suas cervejas. Meu coração ainda esmurrava o tecido do peito enquanto ela procurava sua carteira. Foi só naquele momento que reparei o tamanho de sua bolsa. Era preta, de ombro, Renata tinha algumas parecidas, mas aquela estava gorda, visivelmente carregada. Sua mão finalmente vencera a batalha final, e pudemos cair fora dali.
- Desculpa, eu carrego a casa na bolsa. Pera aí, eu vou ao banheiro rapidinho.
Eu avisei que esperaria lá fora. Deixei o ar seco da cidade povoar todos os cantos de meus pulmões. Senti os batimentos desacelerarem, mas ainda manterem uma velocidade arriscada. Botei o fone de ouvido. O Spotfy começou a tocar “Faroeste Caboclo”, minha música preferida do Legião Urbana.
Beatriz demorou no banheiro. Mas acabou sendo bom poder curtir os nove minutos e três segundos inteiros da letra sem interrupções, me senti um pouco mais relaxado. Foi só quando ela apareceu saltitante atrás de mim que voltei a escutar as buzinas dos carros. Pensei em perguntar o porquê da demora, mas logo desisti, imaginei que uma mulher não gostaria de responder.
Fomos andando pela praia, em direção à casa de Beatriz, na metade de Copacabana. Ela emendava um assunto no outro numa rapidez espantosa, as conversas tomavam rumos inesperados que nada tinham a ver com o tópico anterior. Começávamos a conversar sobre música brasileira, e de repente estávamos debatendo teorias de empoderamento feminino. Beatriz estava no primeiro período da faculdade, mas já sabia que o tema de sua monografia seria “A Trajetória das Mulheres na Literatura Brasileira”.
- Até pouco tempo atrás poucas pessoas lembravam que quem escreveu “Frankenstein” foi uma mulher, Mary Shelley. Mas hoje tem até um filme sobre ela, mostrando como ela conseguiu lançar o livro numa época tão opressora. E as pessoas sabem quem é Virginia Wolf, Jane Austen, essas autoras estrangeiras são conhecidas no mundo todo. E não me leva a mal, elas são maravilhosas...mas eu quero falar sobre Clarice Lispector, Rachel de Queiroz, Adélia Prado, sabe? Desde que li “A Hora da Estrela”, tenho vontade de fazer as pessoas lembrarem que a gente também tem escritoras fortes, inteligentes, com uma puta coleção de contos, livros, poemas incríveis, que a maioria dos leitores da minha geração nunca nem teve contato...
Nunca tive muita paciência para tagarelas. Sempre tendi a ficar entediado, me limitar a sorrir e balançar a cabeça. Mas Beatriz sabia provocar o efeito contrário em mim. Prestei atenção em cada palavra que dizia. Diferente de muitos que conheci, ela sabia a hora de parar e, sempre que o silêncio ficava desconfortável, ela começava a cantar alguma música, me lançando olhares passageiros, num convite para acompanha-la. O repertório era bem variado, ela não estava brincando quando disse que era eclética.
- “Sim, me leva para sempre Beatriz Me ensina a não andar com os pés no chão Pra sempre é sempre por um triz Ai, diz quantos desastres tem na minha mão Diz se é perigoso a gente ser feliz”
- Conhece essa música?
- “Beatriz”, Chico Buarque.
- Minha mãe era apaixonada por essa música. Ela falou pro meu pai antes de ficar grávida de mim que se não fosse pra eu me chamar Beatriz era melhor nem engravidar.
O risinho que se seguiu tinha um tom de melancolia, embora estivesse escondida atrás de camadas e camadas de maquiagem. Mas eu tinha certa habilidade em enxergar melhor o que as pessoas tem de mais triste. Não que isso um dia tenha sido útil em alguma situação.
- Foi sua mãe também que escolheu o nome “Leonardo”?
- Na real, eu não sei. Meus pais nunca me contaram.
- É muita responsabilidade você dar um nome pra alguém, né? Parece que a outra pessoa não tem voz, não tem vontade própria, e vai ter que carregar aquilo pro resto da vida.
- É, acho que sim.
- Esse é um dos pontos que me fazem pensar se eu quero ter filhos um dia, sabe? Eu gosto da ideia do amor incondicional, mas às vezes eu penso que não é justo eu decidir tudo por outra pessoa, tá ligado? Outra pessoa estar moralmente presa à mim, ter que ir pra todo lugar que eu vou, acho essa equação meio esquisita...
Ela falava olhando pra frente, e suas mãos faziam gestos que lembravam um maestro orquestrando pontos do raciocínio.
- Mas não é como se você fosse dona dos seus filhos, é só que durante um período da vida eles ainda não são maduros o suficiente pra decidirem por eles mesmos.
- É, eu entendo isso, mas ainda assim eles são pessoas, sabe? Antes de serem meus filhos são pessoas.
- Eu também tenho medo de ter filhos. Sei lá, vai que eles ficam muito parecidos comigo.
- Ai, que dramático! – ela riu, e senti seus dedos entrelaçando nos meus. Procurei pelas tradicionais pontas de unhas femininas com o tato, mas logo lembrei que não encontraria nada. Tive a impressão de sentir sua mão tremer e senti um certo alívio ao pensar que ela também poderia estar nervosa – Deixa de graça! Isso é coisa da sua cabeça!
Chegamos à porta do prédio. Nos despedimos com um selinho. Beatriz contraiu os lábios e ajeitou os óculos, ligeiramente embaçados. Esperei até que ela entrasse e me devolvesse minha vida vazia, preenchida apenas por inseguranças e conflitos internos. Cheguei em casa, me arrumei para dormir pensando que essa noite com certeza seria bem pior do que a última. Segurei o copo d’água ao lado de minha cama e engasguei ao lembrar do sangue escorrendo pelos ombros de Beatriz. Olhei através da água no vidro, e a caneca se materializou em minha mão.
“Você quer aquilo, só vai saber o que é prazer quando tudo aquilo se tornar realidade!”
Apertei os olhos. Puxei os fones de ouvido da mochila e liguei o som num volume estrondoso, ensurdecedor. Pensei em Beatriz, tentei me concentrar em tudo que havia decorado daquela noite. Me dei conta de que era a primeira vez que eu pensava em fazer mal a outra pessoa além de Renata. Adormeci com esse pensamento, depositando toda minha fé na convicção de que ele precisava significar algo maior do que minha loucura.
VI
Os dias que se passaram após o Shennanigans seriam absolutamente banais, pintados com o tom mofado da normalidade, não fosse pelas mensagens diárias que passei a trocar com Beatriz. Ela estava sempre entusiasmada com algum trabalho da faculdade, e passava horas criticando a situação política do Brasil. Precisei começar a ler mais jornal e assistir noticiários com mais frequência para acompanhar seus argumentos, sempre carregados de ironia, como uma comediante num show de stand-up.
A culpa ainda me acompanhava constantemente. Meu coração ainda palpitava com as toneladas da minha consciência. Ainda travava batalhas e mais batalhas tentando afastar pensamentos, o que, de certa forma, só fazia aproxima-los ainda mais. No entanto, toda vez que encontrava Beatriz, era como se conseguisse ultrapassar obstáculos e conquistar armas mais avançadas, mais poderosas, capazes de enfraquecer os parasitas. Beatriz agia como um conjunto de anticorpos que, apesar da validade vencida, conseguiam fazer com que a culpa não me consumisse como um todo, e me deixasse desfrutar de sentimentos que eu nem lembrava mais que existiam.
Nos beijamos pela primeira vez sentados no sofá de minha sala depois de assistir “Pequena Miss Sunshine”. Beatriz achou um absurdo quando eu contei que nunca tive vontade de ver esse filme, e me convenceu a mudar de ideia.
- É ou não é a melhor comédia dramática que você já viu? – perguntou num tom arrogante, enquanto brincava com uma mecha de cabelo.
- É, até que legal.
- Ah, qual é? Tá falando só pra me agradar! – disse, arremessando a almofada mais próxima em meu braço.
- Não, eu gostei mesmo! Eu geralmente não gosto muito desses filmes que falam sobre família, união familiar, essas coisas, mas esse é bem divertido.
- Sério? Por que?
- Sei lá. Meus pais são engenheiros civis, sempre trabalharam embarcados. Tem ano que eles passam 3, 4 meses longe, trabalhando. Sempre foi só eu e a Renata, a gente foi criado praticamente só pela Eva, que tá aqui desde que eu nasci. Ela é gente boa, mas tem a família dela, sabe? Isso aqui é um trabalho pra ela, e a gente nunca foi próximo mesmo, eu não poderia dizer que ela é como uma mãe pra mim.
Minha boca abriu involuntariamente. Já tinha derramado tudo, não tinha como voltar atrás. Olhei para Beatriz, esperando pelo constrangimento que viria a seguir mas, em vez disso, vi as esmeraldas de seus olhos nadarem numa pequena poça. Não carecia de palavras. Palavras podiam ser superestimadas. Ela agarrou minha mão, dessa vez com força, com a outra, acariciou meu rosto, mais uma vez senti a tremedeira. Segurei sua mão de volta e mergulhei num beijo tímido, mas coberto de desejo de uma ponta a outra. Sua beleza era genuína, natural, o verde das duas esmeraldas não era assombreado por nenhuma maquiagem. Tirei seus óculos, e deixei meus lábios caminharem por seu rosto. Seu celular tocou, e ela me agarrou com ainda mais força, dizendo para deixar tocar. Assistimos mais um pouco de televisão abraçados.
- Quer que eu pegue seu celular? Pode ser importante. – perguntei, já pegando sua bolsa, largada do outro lado do sofá.
- Não, não precisa! Acredita em mim, você não vai conseguir encontrar – disse ela, tirando a bolsa pesada do meu colo – Provavelmente é o meu pai perguntando se eu vou jantar em casa.
Passamos a nos encontrar semanalmente. Antes os finais de semana eram dias como quaisquer outros para mim mas, depois de Beatriz, minha rotina passou a ser esperar pela sexta-feira, quando finalmente poderia escoltar a culpa da suíte presidencial que ocupava em meu cérebro para um quartinho bem nos fundos, como uma pulga atrás da orelha. Renata inclusive já mencionara ter notado uma melhora em minha expressão.
- Gostei dessa Beatriz. Você tá com menos cara de cu. – era o máximo que ela conseguia chegar perto de um elogio.
- Também te amo, mana. – respondi, lançando um sorriso sarcástico enquanto preparava um sanduiche na cozinha. Usava a colher para cortar as cascas do pão. Evitava ao máximo segurar facas perto de Renata.
Renata riu, e voltou a se concentrar na tigela de cereais em cima da mesa. Eva terminava de lavar a louça na pia bem atrás de mim. Entoava alguma canção de Roberto Carlos que falava sobre uma estrada. Percebi sua voz rouca subir algumas notas quando ouvi um “Ai, meu Deus!” acompanhado do som estridente do copo de achocolatado se estilhaçando no balcão. Caquinhos de vidro transparentes rolaram sobre meu prato e minhas mãos.
- Caralho, Eva! Cuidado, porra! – gritei. O copo estava bem na borda, então o vidro escorregara um pouco para fora do balcão também. Comecei a suar instantaneamente. Meu coração poderia explodir a qualquer minuto. As armas estavam em minhas mãos e espalhadas à minha volta.
- Leonardo, não fala assim com a Eva! Foi um acidente, e foi só a porra de um copo que quebrou! – Renata levantou da mesa.
- Desculpa, Léo! Você se cortou? – perguntou Eva, preocupada, já limpando o vidro de cima do balcão.
- Não, tá tudo bem. Desculpa. – respondi, envergonhado, e me afastei dela com as mãos para cima, como um cirurgião cardíaco prestes a entrar numa operação.
Eva passava um pano úmido na cozinha. Fui até a pia. Deixei a água fria limpar qualquer resquício cortante de minhas mãos. Ainda os sentia quando desliguei a torneira. Arrastei a sola de meu tênis no chão e andei até a área de serviço. Tirei os tênis e os atirei na lata de lixo atrás da porta dos fundos. O vidro era traiçoeiro, e minúsculos pedacinhos impossíveis de ver a olho nu ainda poderiam estar presos à sua sola. Renata poderia pisar e, mesmo que não se cortasse, se o caquinho se prendesse em seu pé ou sapato sem ela perceber, ela poderia arrastar para a cama ou para o sofá, talvez coçar o pé com a mão, ela tinha mania de sempre esfregar os olhos e o vidro poderia arranhar sua córnea.
Calcei meu chinelo e decidi subir para meu quarto. Não estava mais com fome, precisava tomar um banho para garantir que me livraria de qualquer vidro que ainda habitasse meu corpo. Parei na porta da área de serviço, Renata vinha descalça com o cesto de roupa suja em mãos, quando me dei conta do fato lastimável: Eva já havia passado pano naquela parte do chão da cozinha quando eu passei de tênis para a área. Isso queria dizer que eu provavelmente arrastara algum caco de vidro para o espaço por onde Renata estava prestes a caminhar sem proteção nos pés.
- Renata, pera aí! Bota um chinelo! – esbravejei, tentando não deixar o desespero transparecer.
- A Eva já passou pano aqui, Léo. E o copo quebrou mais para lá, tá tranquilo – disse num tom preguiçoso e continuou andando.
Observei o chão. Lá estava ele, reluzente diante de meus olhos, podia quase vê-lo rindo da minha cara, zombando da minha doce ilusão de que poderia sair imune.
- Renata, tem um caco de vidro aqui, não vem pra cá, deixa eu pegar uma vassoura! – ela se inclinou um pouco para observar o chão. Virei de costas num só movimento para buscar a vassoura.
- Leonardo, não tem nada aqui, tá limpinho. – virei de volta rapidamente, mas era tarde demais. Ela já estava quase pisando no desgraçado. Ia pisar no vidro que eu coloquei ali, ia se machucar, talvez até ficar cega por minha causa. Minha respiração começou a ficar ofegante.
- Renata, não, você vai se machucar! – caminhei até ela e agarrei seus braços, impedindo-a de continuar
- Leonardo, pelo amor de Deus! Me deixa passar!
Olhei para o chão rapidamente. O brilho era bem pequeno, mas estava lá.
- Renata, por favor! – Segurei seus braços com mais força, e fui empurrando em direção à sala.
- Me solta, Leonardo! – ela largou o cesto de roupa suja, tentando se desvencilhar de mim.
Renata vai deitar no sofá. Vai estalar os dedos do pé enquanto assiste televisão. Vai puxar cada dedinho com força, do mindinho ao dedão. Ela está cansada. Está em semana de provas, passara o dia inteiro estudando. O bocejo vai ser tão forte e profundo, que será possível enxergar gotículas de saliva pulando para fora da boca. Ela levará a mão ao rosto, a mesma mão que minutos atrás entrara em contato com o caco de vidro que você deixou no chão depois de Eva já ter limpado. Ela coçará os olhos com essa mão, até que sentirá algo estranho. No início será um incomodo, como um cisco grudado na córnea. Ela vai esfregar com mais vontade ainda, até sentir a dor da verdadeira tragédia. Em segundos, seus dedos estarão sangrando. Seu olho direito vai arder como brasa, já não enxergará a luz, suas lagrimas vão adquirir uma coloração rubra. Ela gritará de dor, apavorada. Sua imprudência deixará sua irmã cega de um olho.
Olhei nos olhos de Renata. mais claros que os meus, quase cor de mel. Eu não podia deixar que nada acontecesse com ela, muito menos por minha causa. Eu não poderia carregar esse fardo, viver com esse piano nas costas. Eu faria o que tivesse que fazer para proteger minha irmã. Tomei impulso, e a peguei no colo a força.
- Que isso, Leonardo? Qual o seu problema? Me larga!
Ela se debatia em meus braços como uma criança birrenta. No entanto, essa criança era grande e forte. Caminhei de pressa até o sofá, ela se mexia e protestava, sem entender minha atitude. No meio do caminho conseguiu remover as pernas de meu antebraço. Eu a agarrei pela cintura.
- Leonardo, eu não quero te machucar. Me larga! O que deu em você?
Seus pés estavam quase no chão. Senti sua mão empurrando meu peito. Segurava somente seu braço fino. Minha mão molhada não ia aguentar. Imaginei seus olhos sangrando. Apertei com mais força, dei um grande impulso, e puxei ao mesmo tempo que ela fez força para recuar. Senti sua pele se desvinculando da minha, e a capacidade do meu reflexo não pôde competir com os milésimos de segundos que levaram para seu corpo tombar no chão.
- Desculpa! Me perdoa! Foi sem querer! – minha respiração vacilava entre as palavras enquanto a ajudava a se levantar – Eu só não queria que você pisasse no caco de vidro.
- Não tinha caco de vidro nenhum, Leonardo! Não tinha! Só tem dentro da sua cabeça! – minha irmã gritou. Fez uma careta enquanto levava a mão ao cotovelo.
- Você tá bem? Eu te machuquei? Me perdoa! Pelo amor de Deus, me perdoa!
Eu a abracei com muita força. Lágrimas quentes escorriam a toda velocidade, meu nariz com certeza estava vermelho. Meus olhos estavam um pouco embaçados mas, quando focalizei a visão em seu braço esquerdo, percebi que tinha deixado evidências concretas. O hematoma roxo cravado em forma de círculo na pele branca era real, visível, examinável, era a marca da minha natureza violenta, da minha má índole. Eu realmente machucara minha irmã.
- Re, você tá machucada! Eu te deixei marcada! Ah, meu Deus! Me perdoa! – o choro atingiu outro patamar, o nível do pânico venceu a resistência de minhas pernas, me fazendo cair de joelhos. Cobri o rosto com as duas mãos.
- Léo, é só uma manchinha, não tá nem doendo. Eu tô bem. – ela se abaixou – Léo, quem tá se machucando é você. É você quem precisa de ajuda, e não sou eu que posso te ajudar, mano. Eu não sei se eu aguento isso sozinha. – ela sussurrou. Não sei dizer se estava chorando, não conseguia olhar.
Renata ficou mais uns cinco minutos abraçada à mim. Eu queria corresponder, mas a cola que prendia minhas mãos em meu rosto demoraria para ceder. Quando ela tentou puxar meus braços para baixo, levantei de supetão e corri para meu quarto. Bati a porta do meu banheiro com tanta força, que uma das dobradiças gastas do tempo deu seu último suspiro de vida e caiu desfalecida no chão, fazendo a porta entortar e desprender de uma das laterais.
- Merda! – berrei e, sem medo de ser feliz, dominado somente pela raiva que sentia de mim mesmo, dei com a cabeça na madeira branca.
Você deixou sua irmã com um hematoma!
Repeti o golpe, mais forte.
Você derrubou sua irmã no chão!
Minha cabeça latejava. Levei a mão à testa. Renata ainda estava roxa, marcada por minha força.
Fui de encontro ao concreto novamente. Uma, duas, três vezes. Na quarta vez, a outra dobradiça, igualmente desgastada, também abaixou sua guarda, fazendo a porta cair para o lado de fora.
- Ai! – exclamei, caindo no piso azulejado. Senti o liquido morno escorrendo.
Encostei as costas na bancada da pia. Não havia uma parte de minha cabeça que não doesse, mas a área frontal da testa era a pior. Concluí que dei sorte de não ter desmaiado, pois Eva já devia estar se arrumando para ir pra casa e Renata fora para a casa das amigas, como fazia toda sexta-feira. Meus olhos ardiam com a mistura de suor, sangue e lágrimas descendo pelas veias oculares. O que eu tinha feito com minha vida? Já tivera momentos críticos, mas aquele labirinto onde me encontrava era novo, deserto e escuro, e eu duvidava muito que conseguiria achar a saída sozinho. Lembrei de todas as vezes em que ensaiei contar para Renata, explicar tudo que sinto, mas sempre desistia no último minuto. Eu conhecia Renata muito bem, mas por mais que se conheça uma pessoa, não se pode prever qual será a reação quando contar que diariamente pensa em matá-la. Ela só tinha 16 anos, poderia não compreender, tudo isso era injusto demais com ela. Senti uma dor forte na garganta ao pensar no que meus pais diriam. O peso do conservadorismo excessivo e todas as embarcações anuais não permitiriam a certeza de que eu não era maluco, de que eu não era um jovem psicopata manipulador. E o pior de tudo era que eu também não tinha essa certeza. Certeza era tudo que eu não tinha. A dúvida era minha maior inimiga, e eu provavelmente teria que conviver com ela para sempre.
- Léo? O que aconteceu com você?!
Meu cerebelo agiu por si só, levando minha mão até o peito e me fazendo quicar no chão. Quando voltei a respirar, enxerguei Beatriz parada a entrada do banheiro em cima da porta arrebentada.
- Desculpa! Não quis te assustar. A Eva abriu pra mim, eu encontrei com ela lá em baixo.
Balancei a cabeça, tentando pensar, e lembrei que tinha marcado de assistir “Sociedade dos Poetas Mortos” com Beatriz. Olhei o relógio na parede, já passava das 19h.
- O que você fez, Leonardo? Meu Deus, olha pra você! – o barulho que sua mochila gigante fez ao cair no chão não foi muito diferente do estrondo da porta. Ela tirou o casaco, se agachou na minha frente.
Eu obviamente não sabia o que dizer. O ponteiro da minha situação havia estourado. Como eu explicaria a mancha de sangue contrastando com o branco da porta? E a ferida em minha teste? Levei minha mão sangrenta ao rosto de Beatriz. Não importava a história que eu inventasse, ela não acreditaria. E, mesmo se acreditasse, a maior possibilidade era que quisesse manter distância de tanta complicação junta numa pessoa só. Só o que me restava era memorizar seus traços, aproveitar meus últimos momentos ao seu lado.
- Beatriz, eu acho que não sou uma pessoa legal.
- Eu não sei o que aconteceu, Léo. Mas sei que isso não é verdade.
- Como você sabe? A gente não se conhece tanto assim.
- Eu te conheço o suficiente pra saber que você é uma pessoa legal. E vou te contar, meu pai sempre me falou que ninguém é 100% mal ou 100% bom. É mais do que aquele papo clichê de que todo mundo tem defeito. Todos nós temos um lado ruim, por menor que seja. O que importa é o tamanho de cada lado, e qual caminho a gente decide seguir. E o seu lado bom é enorme, eu vi, Léo. Mas, no momento que eu te conheci, eu percebi que você nunca viu. Você é uma boa pessoa, você nunca fez nada que me provasse o contrário. E quantas oportunidades você já não teve para isso?
A sensação de acolhimento era tamanha, que não me preocupei em machucar ou apertar demais Beatriz quando a abracei com toda a força que ainda restava em mim. Um abraço de urso, esmagador. Quando nos afastamos, notei que seu rosto estava todo sujo de sangue. Peguei um pedaço de papel higiênico para limpar, o qual ela se apressou em arrancar da minha mão e passar em minha ferida delicadamente, contraindo os lábios a cada movimento, tensa para não me machucar.
Beatriz pegou o estojo de primeiro socorros no armário, terminou a limpeza, e improvisou um curativo. Sua mão descia de minha testa após colar o último esparadrapo, e reparei que suas unhas estavam bem maiores, impregnadas com meu sangue em baixo e nos cantos. Olhava o tempo todo para o verde de seus olhos. Dessa vez o beijo foi diferente, ela tocava sua língua na minha com uma garra surpreendente. As gases, antissépticos e esparadrapos foram arremessados para perto da lata de lixo no momento em que ela sentou no meu colo e arrancou minha camiseta. Ela estava com cheiro de canela, misturada com alguma essência doce. Tirou a regata que usava e não demorou muito para que eu atirasse sua calça em algum perto da cama. Nos beijamos o tempo inteiro e não pude evitar gemer quando suas unhas recém crescidas bravamente cravaram na pele de minhas costas. Uma mistura de agonia e prazer que eu nunca tinha provado. Até sua forma de me tocar tinha personalidade, caminhava no limite entre delicadeza e ousadia. Seu toque me envolvia, me fazia esquecer de todas as inseguranças. Era um momento de certeza, certeza de que eu nunca sentiria nada igual. Sem sombra de medo, tirei minha bermuda, passeei minhas mãos por cada área de sua anatomia, massageei suas coxas, abrindo espaço, enquanto ela se agarrava forte em minha cintura.
Ficamos deitados por mais uma meia hora sobre o piso gélido. Não cheguei a contar toda a verdade para Beatriz, e ela também não perguntou. Talvez, como eu, não quisesse estragar aquele momento com mais uma conversa pesada. Fiquei feliz só por debruçar minha cabeça em seu peito e chorar um pouco mais, mas dessa vez ela estava lá, e eu sentia que ela entendia, mesmo sem saber exatamente o que se passava. Eu contaria quando chegasse a hora.
Ela me ajudou a encostar a porta na entrada do banheiro. Exaustos, deitamos na cama, ligamos o ar condicionado e ficamos embaixo das cobertas.
- Sabia que eu pesquisei o que quer dizer o nome “Beatriz” depois do nosso primeiro encontro. – murmurei em seu ouvido.
- Jura? E o que você encontrou? – seu rosto se iluminou.
- Vem do latim: “aquela que traz a felicidade”. Juro que não tô inventando.
Ela abriu um sorriso. Acho que pegamos no sono ao mesmo tempo.
***
O barulho irritante do despertador lembrava o som agonizante do traçar de um giz fino numa lousa. Cocei os olhos mau abertos e chequei meu celular. Seis horas da manhã, sábado. Toda a turbulência do dia anterior me fizera esquecer de desligar o alarme.
Calei a boca do aparelho e virei para o outro lado da cama. O momento seria preguiçosamente mágico se não tivesse sido surpreendido pelo lençol vazio e amassado que ocupava o lugar de Beatriz. Levantei de pressa. Procurei por sua mochila. Ela se foi. Claro que ela se assustou. Quem não se assustaria? Comecei a ofegar. Desencostei a porta do banheiro, me agarrando à meu último fio de esperança.
O cheiro enjoativo era tão forte, que senti o ar seco subir diretamente ao cérebro. O grito de pavor aprisionado em minha garganta por pouco não teve contato com o mundo exterior. Cambaleei, me segurando à parede. Beatriz me encarou, assustada, seus olhos inchados despejavam lágrimas. Examinei seu corpo desnudo, encolhido sob o chão molhado de meu box. Seu cabelo encharcado caía sobre os ombros, as ondas castanhas desgrenhadas, irreconhecíveis. Sua mão segurava uma tesourinha, e suas unhas voltaram ao máximo do sabugo, e escorriam um sangue aguado entre as dobras dos dedos. A pele revelava marcas vermelhas em linha reta por toda parte, braços, pernas, coxas, barriga. Olhei para baixo. Espalhados pelo chão, frascos e mais frascos de álcool gel já completamente vazios guiaram meu olhar até a mochila colorida finalmente aberta. Uma garrafa de álcool etílico pela metade ao lado de uma esponja áspera faziam companhia à mini nécessaire semiaberta e seus alicates, lixas e palitos, esparramados para fora. Apertei os olhos, tentei juntar as peças do quebra-cabeça.
- Desculpa, Léo! Me desculpa! – ela chorava sem parar, seu queixo tremia.
De repente, seus olhos caminharam em direção aos dedos, ela evantou sua mão esquerda e iniciou um exame minucioso na ponta do anelar ensanguentado. Rapidamente, obteve os resultados e, em movimento ágeis, começou a operação, cortando os pedaços de unha e carne viva que ainda sobravam. Mordia forte os lábios entre caretas. Meu estômago se embrulhou. Eu estava inerte, preso à parede, mas estava em queda livre num precipício de 30m de altura. Escutei as instruções de meus instintos e me movi num salto.
- Não! Não vem até aqui! Eu tô muito suja, eu tô imunda, Léo! – esbravejou Beatriz, fazendo o sinal de “pare” com a mão.
Ignorei seus protestos e me sentei a sua frente, arrancando a tesourinha de sua mão.
- Me dá, ainda tá sujo! Eu ainda tô com sujeira! – ela tomou sua arma de volta, a enfiando novamente nos cantos das unhas. Lutei com ela por alguns segundos, e recuperei o objeto de tortura. Atirei aquilo na lixeira, acertando em cheio.
Ela segurou o rosto e abriu a boca. Seu corpo estava quente, mas ela se escolhia de frio. Sem pensar em mais nada, eu a envolvi num abraço demorado e senti seu coração martelar o peito.
- Não! Não tem nenhuma sujeira aqui, meu amor. Por favor, não faz isso com você mesma!
- Me ajuda, Léo, por favor, me ajuda! – disse muito baixinho, quase sussurrando.
Naquele momento, eu era todo feito de compreensão. Encostei sua cabeça em meu ombro, e acariciei seus cabelos devagar.
- Tá tudo bem, meu amor. Tá tudo bem. Nada disso é real. Só existe dentro da sua cabeça.
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