A Tal da Audrey Hepburn
- Julia Chaves
- May 15, 2019
- 19 min read

I
Naquele verão, eu tinha de frequentar a loja muito mais do que gostaria. Era meu último verão antes do Ensino Médio, portanto, parecia o momento mais propício para meu pai resolver se aposentar e ficar em casa o dia inteiro. Minha nomeação como sua secretária particular não remunerada havia ocorrido sem que eu me desse conta. Sentia uma raiva inexplicável de mim mesma sempre que me recordava de ficar triste por ele ter que trabalhar o dia inteiro e de chorar de saudade durante uma viagem de negócios. No auge dos meus 14 anos, pensava que a vida era assim mesmo, que eu estaria condenada a me recordar de ser feliz e de não ter a menor consciência.
O repertório de filmes não era condizente com o século XXI. Ah, mas não era mesmo. A década de 1970 era a data máxima na qual se encaixavam. Não foi por falta de oportunidades que nunca fui apresentada a Hitchcock, Truffaut ou Bergman. Esses e muitos outros cavalheiros compareciam a inúmeras reuniões na minha casa e eram todos íntimos do meu pai, que não desistia de me chamar. Lembro de revirar os olhos quando ele reclamava ao me pegar assistindo “Meninas Malvadas” pela milésima vez.
- Já decorou as marcações de todos os personagens ou ainda falta revisar a última cena? – ele conseguia ser mais irônico que Rachel McAdams como a perversa Regina George
- Eu gosto do filme. Dá licença? – respondia autoritariamente, na esperança de encerrar a conversa.
- Isso se chama “perda de tempo”.
Perda de tempo ou não, para mim, passar minhas tardes de domingo vendo cenas monótonas em preto e branco era como o oitavo pecado capital sendo decretado em plenos anos 2000. Os conflitos amorosos e repetitivos das patricinhas nos “high schools” americanos e os efeitos especiais mirabolantes dos heróis da Marvel podiam não me enriquecer culturalmente, mas me garantiam duas horas de divertimento sem maiores esforços mentais.
II
A loja cheirava a mofo e a umidade. Seu Antônio sempre falava ao telefone com algum cliente toda vez que eu entrava lá. E era sempre o mesmo papo: dois ou três filmes que estavam atrasados há mais de um mês, só mudavam os títulos. Às vezes, eu me perguntava se ele na verdade falava com a mãe do outro lado da linha e, assim que nos via entrar, enrolava a conversa dos filmes atrasados para dar a impressão de que sua clientela ia além de cinéfilos aposentados como meu pai. Minha desconfiança podia ser fruto de meu típico mau humor de adolescente, mas não era de todo estapafúrdia. A poeira que impregnava as longas prateleiras cobertas de filmes e livros caindo aos pedaços e a ausência de uma alma viva sequer todas as vezes que eu passava por lá denunciavam a decadência do lugar. Sem falar no fator primordial: todo mundo estava careca de saber que a era das locadoras já havia passado fazia tempo. Os downloads disponíveis na internet e os aplicativos de filmes haviam chegado e se instalado sorrateiramente, como um bebezinho numa família já repleta de crianças, sempre mais interessante e atraente do que o último filho. O fato é que a Indiana Vídeos era a última dos moicanos, a última locadora da Zona Sul que ainda não havia falido. E, é claro, meu pai a havia encontrado. Um estabelecimento que trabalhava com aluguel de filmes da época do descobrimento do cinema e com venda de livros usados já fora de edição parecia ter sido criado para ele, como um terno de linho feito sob medida pelo alfaiate mais consagrado do mundo.
Ela ficava bem no comecinho de Ipanema, na Bulhões de Carvalho, dentro de uma galeria horrorosa cujas únicas lojas abertas além da locadora eram um centro espírita e um estúdio de tatuagem pequeno e abafado. O sol estava a pino quando eu me aproximei de lá numa quarta-feira de tarde. Meus serviços de entrega haviam sido requisitados logo que acordei, já por volta do meio-dia, decidida a ir à praia. A pérola da vez era um tal “Quero Viver”, de 1958, se não me engano. Algo sobre uma mulher gostosa que irrita dois marmanjos e é mandada pra ver o sol nascer quadrado no lugar deles. Já que a história se passa nos EUA, podemos dizer que, em vez do pão, a mulher, pobrezinha, come o hambúrguer que o diabo amassou durante o filme inteiro. Será que eu já ouvi essa premissa em outros milhões de filmes e novelas? Deixa pra lá. O melhor era cumprir minha missão de devolver o DVD são e salvo e poder aproveitar o resto do sol. Abri a porta de madeira desgastada, que rangeu ferozmente com o meu movimento, como se dissesse que não me queria ali.
- Seu Antônio? – chamei ao não ver ninguém no balcão. Mas não obtive resposta imediata. Virei de costas para passar os olhos em alguns lançamentos, quando fui surpreendida por uma voz masculina que vinha bem dos fundos da loja.
- Olá! Desculpa, eu estava lá em cima, atolado com uma pilha de filmes. Posso te ajudar? - definitivamente não era o Seu Antônio. O homem parado atrás do balcão era bem mais jovem.
- Errr... Eu vim devolver um filme pro Seu Antônio – gaguejei apontando para o DVD em minhas mãos.
- Ah sim, você é a Marina, filha do Alberto, né? Seu pai ligou dizendo que você viria e me pediu pra separar outro filme pra ele, que eu estava justamente procurando lá em cima. Eu sou o Felipe, irmão do Antônio. Ele viajou, vai ficar duas semanas fora, e pediu pra eu tomar conta da loja enquanto isso.
- Entendi. Prazer. – disse secamente entregando o DVD pra ele no balcão. Eu frequentava a Indiana Vídeos há um ano e meio e nunca tinha visto a figura. Seu Antônio nunca havia mencionado ter um irmão, muito menos um que parecia ter saído de um clipe da Taylor Swift. O telefone tocou de repente, me despertando do choque momentâneo.
- Desculpa, só um minuto... – disse, já pegando o telefone
Não prestei atenção no que ele falava. Aproveitei a distração para olhar melhor, enquanto fingia me entreter com os filmes recém-chegados na estante principal. O corpo era magro e as feições quase femininas de tão delicadas. Ele era bem mais novo que o Seu Antônio. Devia ter uns 30 e poucos anos. O contorno do rosto era perfeitamente alinhado e o maxilar tão definido que chegava a dar medo de quebrar. Não dava para ver a parte de baixo, mas reparei que ele usava uma camiseta branca com a estampa de uma mulher gritando diante de uma faca, embaixo lia-se “Alfred Hitchcock’s Psycho”. Na minha mais completa ignorância cinematográfica, supus que era um filme clássico importante que, pela primeira vez, eu desejei ter assistido. Os músculos de seus braços eram discretos, mas a pele revelava um bronzeado saudável, enfeitado por uma pequena âncora tatuada perto do cotovelo. Ele era dono de uma beleza diferente, que fugia de qualquer clichê visual dos super-heróis de Hollywood, os quais eu tão bem conhecia. E foi a falta de obviedade daqueles olhos castanhos sugadores de energia que provocou aquela reviravolta no meu corpo. Naquele ponto, eu praticamente sentia os hormônios da puberdade escorrendo por todos os meus orifícios. Não era um amor à primeira vista, mas uma atração digna da Teoria Atômica de Dalton. E, naquele momento, minha carga estava mais positiva do que nunca.
- Pronto! Aqui está o filme que seu pai encomendou. Você vai levar algum pra você? – perguntou ele me entregando um DVD embalado em plástico. O sorriso estampado no rosto era simpático, descontraído e instigante ao mesmo tempo. Instantaneamente, indaguei se ele sorria da mesma forma para todas as clientes, e fui tomada por uma rápida pontada de ciúme que soprou dentro de mim como uma brisa fria numa noite de verão.
- N-não sei ainda. Tô dando uma olhada, – gaguejei. Pensei em pedir uma dica pra ele, mas temi que a conversa evoluísse para perguntas sobre que tipo de filme eu gostava, e eu teria que improvisar respostas imediatas baseadas só nas conversas exaustivas de meu pai.
- Adorei sua blusa. Eu também adoro a Audrey. Sou o fã número um. – ele disse do balcão, apontando para mim. Demorei um pouco para entender, mas quando olhei pra baixo, me dei conta que tinha colocado minha blusa estampada com a figura da Audrey Hepburn fazendo uma bola de chiclete azul. Depois de botar o maiô e a bermuda jeans, peguei a primeira blusa sem manga que vi na minha gaveta. Até então, nem tinha reparado no conteúdo da estampa. Meu pai me deu a blusa no último Natal e me contou um pouco a respeito dela. Eu fingi prestar atenção, mas estava mais interessada em quando iam servir a sobremesa.
- Ah, obrigada! Eu também gosto muito dela. Também sou fã. – menti. Menti descaradamente. Sabia que ela era uma atriz mundialmente conhecida, já tinha visto o famoso pôster de “Bonequinha de Luxo”, mas era só isso. Audrey era uma estranha pra mim. Ela ainda era viva? Senti um frio na barriga ao pensar na possibilidade de ele perguntar qual era o meu filme preferido dela.
- Já vi todos os filmes dela várias vezes – disse Felipe, checando algo no computador – Essa mulher era incrível. Queria casar com ela. – brincou ele, dando uma risada sonora que preencheu o espaço todo.
- É, ela era incrível mesmo. – dei um risinho forçado e constrangido - Bom, eu preciso ir agora. Prazer te conhecer.
- Prazer foi meu. Marina, né? – perguntou ele, franzindo os olhos.
- Isso! Tchau!
E saí pela porta barulhenta em direção ao caos da rua.
III
Saí da locadora como uma menininha que acaba de roubar um beijo do namoradinho da escola. Mas rapidamente passou. Quanto mais pensava em Felipe, mais ridícula eu me sentia. Ridícula por estar pensando num cara que provavelmente tem mais do dobro da minha idade, que eu conhecia há menos de uma hora e de quem eu não sabia absolutamente nada. Sabia somente que ele despertou uma força em mim que eu mesma desconhecia. Na minha cabeça, eu juntava cada detalhe do corpo de que eu conseguia me lembrar. Ele era lindo. Era surpreendentemente lindo para ter um irmão careca, feio, de barba grisalha sempre mal feita e com pelo menos 20 anos a mais do que ele. Se eles eram filhos do mesmo pai e mesma mãe, não há dúvida de que a sorte conta no momento da divisão das células e, com certeza, ela não estava ao lado do Seu Antônio.
Encontrei com algumas amigas na praia, mas não falei nada sobre meu breve encontro com Felipe. Tenho certeza que renderia uma longa conversa, repleta de perguntas superficiais, mas preferi não falar nada. Acho que, na minha cabeça, não revelar a identidade dele era como tê-lo só para mim. Descrevê-lo seria como dar margem para que outras meninas imaginassem novos traços para ele. E eu não queria isso. Queria que ele permanecesse sempre daquele jeito, sem novas interpretações.
Tomei a primeira atitude que qualquer garota da minha idade tomaria: peguei meu celular e procurei por ele no Facebook do Seu Antônio. Mas pude sentir uma água mais fria que a do mar cair sobre mim quando não encontrei nenhum “Felipe”. Digitei o nome com todas as ortografias possíveis, mas não tive sucesso. Ele não tinha Facebook nem Instagram. Provavelmente era algum idealista, revoltado com a dimensão absurda que a tecnologia e as redes sociais tomaram para as pessoas. E isso esgotava minhas possibilidades de saber um pouco mais sobre ele. Racionalmente, eu sabia que nunca poderia tê-lo. O peso dos meus 14 anos caía como uma granada em cima da maioridade dele. Mas talvez eu não fizesse tanta questão de tê-lo para mim. Ficaria feliz em poder conversar com ele, em simplesmente admirá-lo de perto, em ser pra ele mais do que uma simples cliente de quem ele rapidamente esqueceria.
Foi aí que me dei conta de que eu sabia algo sobre ele. Percebi que existia alguém que nos ligava, que nos conectava numa equação sem sentido que eu montara com as incógnitas da minha imaginação fértil: Audrey Hepburn. Sim, a única informação que eu tinha sobre Felipe se resumia a Audrey Hepburn. Era o único assunto sobre o qual eu tinha certeza que ele adoraria conversar descontraidamente. Fiquei olhando para algumas fotos dela na internet. Pude sentir a inveja e o ciúme rasgando as minhas entranhas. Eu não me parecia com ela, nem um pouquinho. Meu cabelo cacheado e meu corpo rechonchudo não eram compatíveis com sua magreza e traços perfeitos. Mesmo se eu fosse cara de pau o suficiente para fazer um coque, botar um vestido preto, usar o colar de pérolas da minha avó e aparecer lá na locadora com luvas e um cigarro na mão, não adiantaria nada. No entanto, Audrey era minha única esperança.
Comecei os trabalhos naquele mesmo dia. Cheguei em casa e li tudo que achei sobre Audrey Hepburn. Encontrei palavras como “ícone” e expressões como “maior lenda feminina no cinema”. Eu não era nem nascida quando ela morreu, portanto, nem podia dizer que eu e ela poderíamos ter tido um breve contato visual em alguma vinda dela ao Brasil. Nossa relação era estritamente póstuma. Audrey nasceu na Bélgica, mas foi criada na Inglaterra. Meu pai sempre me disse que os ingleses são os melhores atores, portanto, para mim, ela era inglesa, já até conseguia vê-la tomando chá com leite em alguma boulangerie charmosa no coração de Londres. Descobri que ela havia tentado a carreira de bailarina, mas que sua professora cortou seu barato, dizendo que ela era alta demais e que não tinha talento suficiente para se profissionalizar na dança. E eu? Será que eu era feia e desengonçada demais para me profissionalizar na Audrey?
Sua lista de filmes era gigantesca. Dei prioridade pros mais aclamados e pra aqueles com sinopse mais interessante. Procurei os filmes dela no Netflix e em sites de downloads. Não podia pegar na locadora, queria surpreender Felipe com meus novos conhecimentos “audreyanos”. Assisti três ao longo da semana. Comecei, evidentemente, com “Bonequinha de Luxo” e, cravando um punhal afiado na superfície do meu orgulho adolescente, tive de admitir que adorei. Vi em Holly Golightly uma mulher imperfeita, graciosa, mas cheia de caprichos e ambições inabaláveis, bem diferente das mocinhas frágeis com que eu estava acostumada. Eu conheci uma Audrey bem jovem e inexperiente em “A Princesa e o Plebeu’’ e me deparei com protagonistas sofridas e cheias de atitude em “Infâmia” e “Charada”. Audrey, de fato, tinha várias faces, e eu estava me tornando especialista em cada uma delas. A verdade é que o processo não estava sendo tão doloroso quanto um anúncio da Polishop. Sabia que meu interesse vinha exclusivamente do Felipe, mas a Audrey conseguiu me cativar. Já me peguei imaginando que ela saía da tela, e me contava um monte de curiosidades sobre a carreira. Será que eu também estava me apaixonando?
IV
O dia de devolver o último DVD do meu pai finalmente chegou. Sete dias se passaram. Claro que eu estava ansiosa para ver o Felipe de novo, mas estaria mentindo se dissesse que foi ruim esperar. Minha espera foi agraciada pela companhia mais honrosa possível. Audrey foi minha melhor amiga durante aquele período e nós nos demos super bem. Ela ainda tinha muitas versões que eu não conhecia, mas não importava. Conhecia o suficiente para opinar, conversar sobre as motivações de Holly Golightly e sobre a impecabilidade do figurino de Regina Lambert.
Caminhando para a locadora, me senti a Dorothy percorrendo os ladrilhos amarelos rumo ao encontro com o Mágico de Oz. Caminhando em direção ao desconhecido, a uma conversa que eu não sabia que fim ia ter. O tecido da minha blusa quase vibrava junto com os batimentos do meu coração no momento em que abri a porta ranzinza.
- Olá! – ele estava atrás do balcão lendo um livro. A blusa quadriculada de botão tinha uma pequena abertura no peito, que revelava alguns mínimos centímetros do seu peitoral definido. Só isso foi suficiente para que eu esbarrasse na estante e derrubasse dois ou três livros.
- Oi! Desculpa! – disse, corando dos pés à cabeça, enquanto pegava o desastre do chão – Vim devolver o filme do meu pai e pagar a taxa – botei o DVD em cima do balcão.
- Obrigado. Vou ver aqui quando tem de débito. – ele pegou o DVD e sentou na mesa do computador para averiguar.
- Eu revi “Bonequinha de Luxo” aquele dia. Você falou da Audrey e me deu vontade de ver de novo. Acho que é o filme dela que eu mais gosto. – disse com ar simpático enquanto cravava a unha na coxa embaixo do balcão.
- É um dos meus também. Só acho que prefiro “A Princesa e o Plebeu”.
- Também adoro. – concordei
- Apesar da trilha sonora de “Bonequinha de Luxo” ser melhor.
- “Moon River” é a música mais bonita que eu já ouvi – disse, e ele riu alto. Sei que não foi pra me constranger, mas não gostei do riso. Não gosto muito quando riem de mim assim quando eu tento falar sério. Só consegui afastar minha insatisfação quando me imaginei partindo pra cima dele, ele correspondendo selvagemente enquanto levantava minha blusa. Imaginava passar minhas pernas em volta daquela cintura fina e me livrar daqueles botões cruéis, que me revelariam o paraíso. Pensava em nós dois deitados em cima daquele monte de livros. Faríamos amor em cima do conhecimento. Amor em cima da razão. Seria o equilíbrio perfeito.
- Já viu “My Fair Lady”? – perguntou Felipe. E eu me dei conta que era a segunda vez que ele perguntava.
- Ahh… o quê? É... não… nunca vi esse, não – disse rápido, sem pensar
- Você precisa ver! – ele disse, já virando para trás e pegando um DVD que estava embaixo de outra pilha de filmes - Se você gostou de “Moon River”, vai ficar louca com “On the Street Where You Live”. Essa música mexe comigo. Leva hoje e me traz no final de semana, aí a gente conversa.
Ele me olhou fundo nos olhos enquanto me entregava o DVD de “My Fair Lady”. Peguei instintivamente, em movimentos automáticos. Podia sentir o olhar dele me acompanhando enquanto eu guardava na mochila. Senti como se estivesse em uma prova prática, e ele era o instrutor da autoescola, sempre atento para anotar qualquer falha no bloco de avaliações. Eu agradeci, paguei a taxa de aluguel e nós conversamos mais um pouco sobre “Charada” e “Infâmia”. Não saberia avaliar quanto tempo conversamos e em que grau estava minha concentração nas palavras dele. Talvez cinco minutos, ou dez ou trinta... Nunca saberei.
Até que finalmente nos despedimos com um “Até sábado”. Eu saí saltitando até a porta e, pela primeira vez, não me incomodei nem um pouco com o barulho.
V
“Aí a gente conversa”. “Aí a gente conversa”. “Aí a gente conversa”. A frase martelava na minha cabeça como o tique-taque de um relógio. Só ele se referir a nós dois como “a gente” revelava uma intimidade que não estava lá antes. Esse “a gente” me aproximava dele, mesmo que subjetivamente. Eu, naquele momento, não era só “eu”, era “a gente”.
Tudo graças à Audrey. Ela era minha fada madrinha, o pivô gracioso da minha relação com Felipe. Era graças a ela que Felipe esperava curiosamente pela minha opinião. Ela havia nos unido involuntariamente, e merecia ser honrada por isso. Chegando em casa, não perdi nem um segundo do meu tempo em direção ao final de semana. Peguei o computador e assisti ao filme com uma concentração eclesiástica. Queria captar cada instante do filme, cada detalhe que pudesse ser relevante pra nossa próxima conversa.
Sempre achei musical um negócio esquisito. Gostava de algumas músicas de “Grease”, mas era vencida pela vergonha alheia toda vez que via um cidadão começar a cantar do nada, no meio de uma conversa civilizada. Sempre foi muita informação para minha cabeça. No entanto, a falta de veracidade não passou pela minha mente enquanto assistia “My Fair Lady”. Estava muito ocupada rindo das barbaridades de Elisa Doolittle para me preocupar com qualquer indagação de sentido. Talvez sentido fosse menos artisticamente necessário do que eu pensava. Acho que essa foi uma das primeiras lições que a Audrey me passou.
O final de semana chegou como uma chuva forte que cai depois de meses de seca no sertão. Pensei em ir logo no dia seguinte, mas não queria dar muita bandeira. Queria que ele pensasse que eu tinha outras coisas pra fazer além de assistir filme em plenas férias de verão. Por isso, esperei até sábado. Queria ficar à vontade com ele, por isso fui bem no final da tarde, perto do horário de fechar, quando não tem mais ninguém procurando distrações fictícias para alegrar o final de semana. Seria só eu e ele. No mundo que eu idealizava internamente, nosso papo seria tão agradável, que eu ficaria para ajudar a fechar a loja e ele me acompanharia até o portão da galeria. Quem sabe eu até fosse presenteada com dois beijinhos na bochecha no momento da despedida.
VI
Durante o trajeto do metrô até a General Osório, eu repassava mentalmente a forma como iniciaria meu discurso sobre Elisa Doolittle. Estava pensando em qual dos números musicais nomearia como meu favorito, quando senti uma freada violenta, que me obrigou a segurar no poste para não cair no chão. O baque foi acompanhado de alguns gritinhos e palavrões de passageiros momentaneamente assustados. A luz do trem começou a piscar, quando ouvi uma voz de homem dos autofalantes, que se desculpava pelo ocorrido e dizia que era preciso aguardar a manutenção e liberação da próxima pista.
Meu corpo obedeceu aos meus instintos selvagens e me fez levantar meu pulso esquerdo e abaixar meus olhos na direção do relógio. Eram 18:15. A locadora fechava às 19:00. Senti uma ponta de alívio percorrer meu peito. Daria tempo. Já havia passado por situações semelhantes no metrô e, qualquer que fosse o problema, era sempre resolvido em menos de cinco minutos. Vi que um assento acabara de ser liberado e sentei para esperar.
Mas minha agonia não durou os cinco minutos erroneamente estimados. Logo se tornaram dez, e depois onze, depois treze, depois quinze. Fui tomada por uma irritação absurda, que se intensificava a cada pedido de desculpas que saía das caixas de som. A possibilidade de perder minha chance de conversar com Felipe sobre o filme conseguia me assustar mais que o risco remoto de algum acidente. Comecei a usar a força do pensamento para xingar as mães de todos os funcionários daquele metrô de merda. Já estava arquitetando meu plano de vingança contra todos os responsáveis quando senti o trem se movimentar. Juro que ouvi um coro cantar “Aleluia” em vozes celestiais de crianças sopranos.
Saí do vagão como quem vai tirar o pai da forca. Corria na velocidade máxima que meu corpo pesado permitia. Eram 18:45 quando cheguei na galeria. Parei para ajeitar o cabelo e limpar um pouco do suor que pingava da minha testa e braços. Enquanto passava um pouco do perfume que tinha trazido, reparei que as luzes da galeria estavam quase todas apagadas. O centro espírita e o estúdio de tatuagem já estavam com as portas trancadas e os interiores escuros. O medo não demorou para me invadir novamente. Mas a Indiana Vídeos só fechava às 19:00, eu tinha certeza, pois já viera buscar novos DVDs pro meu pai perto desse horário. Juntei o resto de esperança que ainda carregava e comecei a caminhar em direção a locadora.
E lá estava ela. Pregada na porta bem a minha frente com suas letras garrafais. A coloração vermelha de sua pintura representava bem o sangue que subia à minha cabeça naquele momento. Me custou um pouco para processar todas as conotações da palavra “fechado” enquanto a lia automaticamente. O pano acinzentado cobria não só o vidro que dava para o interior da loja, mas também todas as minhas esperanças e meus esforços desperdiçados. O ano tem uns 48 sábados e eles escolheram logo esse para fechar quinze minutos mais cedo.
Senti um desgosto profundo de mim mesma quando percebi que meus olhos estavam marejados de lágrimas, e sabia que eram lágrimas características de menina mimada e voluntariosa. Aquele dia estava perdido, mas ainda havia segunda-feira, dia esse que eu sempre detestei, mas que agora representava meu último resquício de consolo. Já me ajeitava para ir embora quando reparei num rastro de iluminação que se projetava de um pequeno buraco na manta cinza que cobria a porta.
A abertura era pequena, mas ficava bem na altura da minha cabeça. Refleti por um minuto antes de decidir se aproveitaria a chance. Qual seria minha opção se o visse? Ele estaria arrumando filmes ou fechando o caixa, doido para ir embora e aproveitar qualquer aventura que o sábado lhe reservava, e eu passaria da gentil aspirante a Audrey Hepburn para uma cliente mala que o prendia além de seu expediente num sábado à noite. Mas minha reflexão durou milésimos de segundos. Aproximei o rosto do orifício discretamente.
Consegui abafar o grito que ficou preso na minha garganta um segundo depois de conseguir acertar o foco do meu olho direito. O espaço de visibilidade era limitado, mas permitia uma visão clara dela. Daquela a quem eu me tornei tão íntima nas últimas duas semanas. Audrey estava lá, sentada em cima do balcão de pernas cruzadas, com seu longo vestido preto, o penteado perfeitamente erguido, colar de pérolas e um cigarro preso numa piteira. Ela intercalava cada baforada com palavras inaudíveis que declamava para um homem esparramado numa poltrona velha à sua frente, que reconheci rapidamente pela careca e o aro de óculos vermelhos como Seu Antônio. Afastando um pouco mais a cabeça dava para ver que ele também segurava um cigarro na mão esquerda, enquanto a direita fazia movimentos ágeis em algo que não consegui enxergar, mas que devia estar perto de sua cintura.
A rajada de informação ainda liderava meus pensamentos, mas eu consegui reparar que a Audrey que seduzia Seu Antônio era um pouco mais musculosa do que a mocinha de anatomia delicada a quem todos chamam de “ícone feminino do cinema”. Eu procurava por rastros do Felipe dentro da figura, e entrava em estado de negação toda vez que encontrava uma pista. No rosto, o resto de barba por fazer, os mesmos olhos castanhos que brilhavam como duas estrelas cadentes e, no braço, a mesma tatuagem de âncora, que coroava minha total incredulidade. Tinha bem mais Audrey do que Felipe, mas ele estava lá. Muito bem escondido atrás de inúmeras camadas de maquiagem, mas estava.
Eu queria ir embora. Odiei meu cerebelo por não dar sinal de vida e falhar na simples tarefa de mandar informação para minhas pernas imóveis. Foi num estalo que vi Seu Antônio levantar num pulo e agarrar Audrey pela cintura. Ela jogou a piteira longe e enroscou as pernas nele enquanto beijava sua boca e pescoço em movimentos assustadoramente brutos, deixando manchas de batom vermelho por toda a face enrugada. Fechei os olhos num momento, mas pude ver Audrey arrancando a camisa dele, liberando o meio de campo para fincar suas unhas vermelhas compridas nas costas cheias de pintinhas beges. A cena chegou no clímax quando Seu Antônio a jogou de bruços no balcão em cima de um monte de livros. Levei a mão à boca ao vê-lo levantando o vestido dela e, finalmente, consegui responder ao desespero de meu corpo e sair correndo. Perdi o final épico de um espetáculo que nem precisei pagar para assistir.
VII
A verdade sempre aparece. Era o que todos diziam, e eu tinha maturidade suficiente para entender. Mas, a cada passo que dava pelo calçadão de Ipanema, eu podia sentir o ódio se acumulando. Sentia ódio da verdade por ela ter se adiantado absurdamente comigo. Quem cancelara seus outros compromissos anteriores a mim? Qual foi a autoridade que lhe delegou a missão de me aterrorizar?
A verdade ria da minha cara, sambava em cima de mim. Tenho certeza que ela aparece para cada pessoa de uma forma diferente, que adquire novas cores, texturas e fisionomias. No meu caso, eu podia ver Audrey Hepburn gargalhando para mim, dizendo: “Filhinha, você realmente achou que poderia competir comigo?” Sim, eu achei. Achei que ela seria meu bilhete para a Estação Felipe. No entanto, ela agiu como minha deixa para sair. Ela era a estrela, e tudo que eu fiz foi preparar o palco para sua entrada triunfal.
Entretanto, me peguei com vontade de conhecer mais filmes da minha mais nova rival. Assisti “Sabrina” numa noite chuvosa de domingo e acordei estarrecida depois de sonhar com Felipe caracterizado cantando “La Vie en Rose” apoiado no balcão da locadora. A voz era doce e contagiante, como no filme. E, para minha, total surpresa, sentia o fascínio se impondo dentro de mim. Enxergava o homem que conhecera na locadora, mas não podia negar que o figurino de Givenchy lhe caía como uma luva e me fazia sentir como o personagem de William Holden diante da mocinha encantadora. A verdade era que Felipe sabia ser Audrey como ninguém. Talvez até melhor do que a própria Audrey.
Voltei à locadora na segunda-feira seguinte para devolver o DVD de “My Fair Lady”. Combinei meu vestido branco florido com um velho chapéu de praia da minha avó e, por um segundo, me senti como a verdadeira Sabrina Fairchild no momento em que volta da França cheia de elegância e estilo.
- Oi! Tudo bom? Gostou do filme? – disse Felipe ao me ver entrando
- Gostei muito. Obrigada! – respondi com um sorriso de canto de boca enquanto lhe entregava o DVD – Acho que estou apaixonada pela Audrey.
- E tem como alguém não se apaixonar por ela? – disse ele dando uma risada arrogante
- Pois é... Quem sabe um dia a gente não se esbarra por aí, né? – disse já saindo pela porta em direção à minha vida.
Adoro a ambientação, consigo ver a locadora no corredor , a casa de umbanda ao fundo com uns Santos enormes na porta e sentir aquele cheiro de mirra, sândalo que queimavam junto com abre-caminho e vence-demanda, misturando-se com o cheiro de mofo!